segunda-feira, 19 de agosto de 2013

TIO CANDÓCA

Saí de Morungava, mas Morungava não saiu de mim. Sou um homem urbano, mas que sonha um dia quem sabe poder viver junto a um sitiozinho em Morungava sem as preocupações do cotidiano das cidades grandes, estas máquinas de produzir loucos em série. A correria do dia-a-dia, a luta desenfreada da sociedade competitiva e o consumismo exacerbado, além do medo e da violência vem gerando sérios distúrbios no campo psicossocial. Eu fico às vezes a me perguntar a quanto tempo a gente não anda mais de pés descalços? Não andamos pelos campos de pés no chão, não obstante tendo os pés roseteados. E quando me pego nestas divagações tenho certeza que Morungava é um SPA ainda muito pouco explorado. Precisamos urgentemente reaprender o sentido da vida. Nós urbanos somos seres apressados, que realizamos dezenas de atividades ao mesmo tempo e aos poucos esquecemos que o essencial não é isto. Após vir para o Vale do Sinos sempre que possível passava férias ou temporadas junto ao sítio do tio Dino e até hoje recordo os momentos magníficos que passei neste local bucólico e repleto de histórias. Como esquecer a porteira do velho sitio. As estradinhas de chão batido repletas de Maria mole ao redor dos barrancos. Como esquecer a carreta carregada de pasto, meu tio gritando com os bois: Minuano e Bacamarte e meu primo e eu abrindo as porteiras. Nos finais de tarde de inverno quando o sol se punha no horizonte, nós ficávamos observando as nuvens vermelhas que formavam desenhos, ursos, elefantes e até algodão doce. Esta paisagem, um cartão postal, ainda hoje está incrustada em minha retina. Como esquecer do cheiro gostoso das broas de milho ou dos bijus feitos pela tia Miúda ou da garapa (guarapa), feita na hora com  limão.  E a noite ao redor do fogo de chão nós ficávamos ao lado do tio Dino ouvindo as histórias contadas pelos carreteiros vindos de Santo Antônio. Eles vinham em comboio, de três, quatro e até cinco carretas e pernoitavam no sítio de meu tio, pois ali eram sempre bem vindos. Os carreteiros traziam melado, rapadura, açúcar, ovos, porcos, galinhas, tamancos de madeira e animais que eram vendidos na região. O cheiro do galpão e o vozerio dos centauros do Rio Grande não me saem da mente. Dos vários personagens quase mitológicos do Morungava jamais esquecerei do tio Candóca. Sempre de bombacha preta, chapéu quebrado na testa, daqueles de beijar santo em parede, tio Candóca era o Rio Grande em carne e osso. O velho taura morava sozinho num sitio beira de estrada próximo das terras de tio Dino, depois que sua esposa morrera. Dizem os mais chegados que tio Candóca após a morte da companheira de mais de 60 anos de casamento se tornou ainda mais quieto. Olhar contemplativo, por vezes perdido no horizonte, tio Candóca parecia rebuscar no passado a felicidade de outrora. Quando passávamos em cima da carreta, tio Dino o cumprimentava e jamais esqueço a cena. Meu tio tirava o chapéu e saudava “Buenas Che Candóca... Como estamos?” Sorvendo o mate sentadito na varanda da casinha branca, tio Candóca também retribuía tirando o chapéu e por um momento seus olhos brilhavam tal como sol do meio dia e a resposta com sorriso largo saia assim ao natural “Buenas Arcedino... Estamos indo bem com a graça do Pai Velho lá de riba”. Um dia dentre as minhas muitas peripécias em Morungava, além de tomar banho pelado na Lagoa dos Schreiber, apanhar bergamota na beira da estrada, subindo lá nas grimpas, estucar cachópa de marimbondo com taquara, amarramos uma estopa ensopada de querosene no pé de um urubu que pegamos após um período de tratamento, soltamos o bicho num final de tarde, coisa mais linda de se ver, parecia um míssil daqueles dos americanos. O bicho velho subiu incendiando a estopa e cruzou a tarde noite naquele lusco fusco de aurora,  assustando os colonos da região, alguns afirmavam ser um OVNI que cruzou  a noite de Morungava. Teve gente que afirmou que a nave (urubu),  desceu no morro do Itacolomi, outros disseram que a tal nave se tratava de um espião vindo da cidade de Taquara ou Gravataí com propósito de pesquisar a tecnologia avançada desenvolvida em Morungava. Dias depois soube-se que nosso pobre urubu queimará uma roça de milho à dois quilômetros do sítio do meu tio. Certa feita tomei coragem e fui visitar tio Candóca que me falou da vida e assim como meu tio Dino também me passou os primeiros ensinamentos de amor por este chão e de respeito a natureza. Já com quase 90 anos nas costas, tio Candóca era uma lenda na região. Conhecia as ervas do campo e sabia a utilidade de cada uma delas. Sua esposa sinhá Firmina era eximia parteira, aprendera o oficio na campanha lá pras bandas de São Sepé de onde vieram para o Morungava no final dos anos 40. Tio Candóca não bebia, não gostava de carteado nem andava em bailanta, mas não abria mão de assistir as carreiradas de cancha reta nos domingos à tarde. Como num ritual mágico, tio Candóca encilhava seu zaino, um cavalo crioulo flor de especial, colocava sua melhor roupa, casaco estilo os revolucionários farroupilhas, boina preta ao invés do chapéu, bombacha preta e botas impecáveis e o lenço? Nem se fala vermelho, maragato puro. Dizem os antigos que tio Candóca participou da Revolução de 1923 e era amigo pessoal de Assis Brasil, bem como, de Zeca Neto e Honório Lemes, porém ele mesmo nunca confirmara, pelo contrário mudava de assunto sempre que inquirido. Na beirada do para-peito da cancha, tio Candóca passava horas assistindo os páreos. A tardezita, tio Candóca seguia estrada a fora montado em seu cavalo e eu no auge dos meus 10 anos sem saber vislumbrava um centauro da pampa. Tio Candóca era o Rio Grande a cavalo. Anos mais tarde soube que tio Candóca morrera sentado na varanda de sua casa, ali naquele lugar onde ele ficava vendo a carretas vindas do Monjolo em suas nostálgicas romarias, bem como, os tropeiros que por ali passavam levando gado para Taquara. Tio Candóca faz parte da minha história e como diria Liev Tolstói “Se queres ser universal, escreva sobre tua aldeia” ou ainda parafraseando o maior poeta da América Latina, Pablo Neruda – Confesso que vivi!

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