Ficar sábio antes de envelhecer é tudo.
Em tempos bicudos nada melhor que um “pit stop” para recarregar as
baterias físicas e espirituais e nada melhor que o velho e bom Morungava. Não
existe lugar mais bonito e hospitaleiro que a terra que viu nascer e que um dia
(vai demorar) até porque os Wingert são longevos pra dedéu. Um Wingert que
morre com 85 anos é considerado um guri. Conta-se que uma parenta nossa com 118
anos de vida estava à beira do caixão de um dos seus filhos que havia morrido
com 87 anos e disse está pérola olhando para o outro filho de 93 anos: “Eu
sempre dizia que este guri não iria se criar e morreria cedo” Pois é, mas este
escriba quer repousar lá no velho Morungava quando este corpo alquebrado pelos
125 anos não me permitir mais jogar no Guarani, nem escrever, torcer pelo
Colorado, não conseguir mais ler Leandro Karnal, Neruda, Quintana, Erico
Verissimo Borges nem mijar no vaso, muito menos limpar a bunda, ai estará na
hora de dizer”Fui. Vazei”, mas na minha lápide quero a escrita: “Aqui jaz muito
a contra gosto um jornalista que amou a família, os amigos, os livros e a
verdade. Um judeu o qual ninguém mandou!” Mas isso quando estiver escafedido,
dobrando a curva da boa esperança. Mas voltando a Morungava e sua gente
hospitaleira, seus sítios bucólicos, suas estradas de chão batido onde a poesia
vira realidade ao cruzar por uma carreta de bois cheia de pasto, um “guaipéca”
correndo na frente dos bois e um colono tirando o chapéu para te cumprimentar.
No barranco destas estradas um colorido de flores do campo que nem Picasso ou
Van Gogh seriam capazes de pintar.
Parafraseando o poeta Marco Aurélio Campos digo: “Sou enfim, o sabiá que canta.
alegre, embora sozinho. Sou gemido do moinho, um tom triste que encanta. Sou pó
que se levanta. Sou raiz, sou sangue, sou verso. Sou maior que a história
grega. Eu sou morungavense, e me chega prá ser feliz no universo”. E próximo aos finados um “ventito tangueadito”
vindo do litoral que pelos olhos da fé até se sente o cheiro do mar. Nos galpões
em dias invernais colonos sentam a beira do fogo tendo o teto rodeado de
picumã, onde contam causos de carreiradas, pescarias e assombrações. E lá em
Morungava o velho taura, cerne curado que o Rio Grande tem, tio Dino é uma
espécie de Confúcio galponeiro com o conselho sábio e a palavra certa na hora
incerta. Tio Dino envelheceu melhorando, contrário de muitos aqui na cidade que
a idade os piora, aliás, até os canalhas branqueiam o cabelo. Na peça de Shakespeare,
o bobo da corte, leal companheiro de Lear durante a peça, sintetiza o destino
do rei: “Pobre Lear, que ficou velho antes de ficar sábio.” Nessa referência ao
erro cometido pelo nobre, o bobo nos apresenta o grande problema: Lear não
soube envelhecer e ganhar o único fruto que a idade pode dar em troca de todas
as outras perdas: o conhecimento. Com ele, somos capazes de manipular tudo e
todos, quem sabe chegar ao Übermensch de Nietzsche. Hamlet tenta fazer disso
sua razão de viver e acaba por matar quase toda a corte da Dinamarca, incluindo
a si mesmo, em um jogo político intricado e problemático. Hamlet supera a
vilania do usurpador Claudio, assassino de seu pai, mas paga um alto preço ao
morrer atingido pela espada envenenada. Caro leitor desculpe ser prolixo
no texto mas há motivos, pois
minha escrita muitas vezes esconde canhões entre os ramalhetes de flores. E no
teatro dos vampiros somos todos atores, segundo mestre Valter. E na banda da
ilusão eu vou tocando o bombardão. Ah e se eu não vou a banda vem para me
buscar! Pão quente com “chimia” e nata tirada do leite e não os veneninhos dos
mercados (vai uma dose de sódio ai?), café passado no saco (de pano); o aroma
que inunda a casa velha testemunha ocular de muitas escaramuças nos tempos de
revoluções e de muitas reuniões dos 11. À noitinha entre o fogo de chão o mesmo
ritual, chimarrão de mão em mão. O chimarrão é a bebida mais democrática que
existe, pois na mesma cuia sorvem o mate da esperança; estancieiro e peão. O
chimarrão tem gosto de esperança e embala sonhos. Na beira do fogo de chão ao
lado dos peões, os cães e gatos também se ajeitam e no céu tendo como pano de
fundo o Itacolomi, uma estrela cadente corta a noite morungavense para um
pedido ser feito. O velho Dino conta que nos tempos brabos havia na região um
taura temido por todos, morava no Paredão e era daqueles de faca na bota.
Gaudério que tinha dizem as más línguas umas dez mortes nas costas, a maioria
as traições. Andava sempre armado e gostava de confusão nos bailes, nas canchas
de carreira, no jogo do osso. Afirmam que num carteado na casa de dona
Emerenciana levantou com nove cartas no bolso do casaco, não sem antes dar três
tiros no forro da casa num medonho “buenas noites”. Não é que em Morungava
morava um sujeito chamado Abrelino medroso, imagina um homem medroso. Imaginou?
Multiplica por três. O ônibus que seguia para Porto Alegre parou na faixa e
Abrelino adentrou. O medroso seguiu para o fundo do ônibus que já estava lotado
e sentou no único lugar vago, mas percebeu que havia várias pessoas de pé no
corredor. Pensou: “Porque será que só este lugar está vago?” Sentado e feliz
por não ter que viajar até a capital de pé, Abrelino olhou para o lado e notou
que seu companheiro de viagem era o sujeito aquele, o valentão. Abrelino já
tremendo, suando frio e as tripas roncando ainda percebeu que o taura tinha um
revolver 38 na cintura e um punhal. Mas o teatino do Paredão por sorte estava
dormindo, roncava e babava no canto da boca. O nervosismo de Abrelino foi tão
grande que não se aguentou e vomitou, mas pensa num vomito... Botou para fora
os três ovos fritos, feijão mexido, linguiça, pão com chimia e duas xícaras de
café e sabe onde? No colo do valentão
que seguiu roncando. Mais apavorado que nenê cagado Abrelino sentiu que
morreria ali mesmo quando o sujeito acordasse. Pouco antes de chegar à capital
o índio malacara acorda e olha aquele café da manhã todo no seu colo, passa a
mão no revólver e antes de qualquer coisa Abrelino que ficou sábio antes de envelhecer pergunta com cara de “preocupado”
com o colega de banco: “O senhor está melhor?”
Tem que ter concurso.
100% Morungava - Jair Wingert;
jornalista.