quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O ANALISTA DE MORUNGAVA

Mário era um tipo metódico e sua vida sempre foi norteada pela simplicidade e sobretudo pela obviedade. Era do tipo que sempre saia com uma capa de chuva, com vários comprimidos na leva tudo. Pegava sempre o mesmo ônibus e trabalhava na mesma empresa como auxiliar de escritório. A vida de Mário era certinha sem sobressaltos. No final de ano ele alugava uma casa em Curaçau (um lugarzinho ali entre Curumin e Arroio do Sal), resultado da economia do ano inteiro. O carro popular fora adquirido num consórcio a duras penas com uma economia hercúlea. Os filhos de Mário, Carolina e João Pedro cursavam faculdade graças a uma bolsa obtida do ProUni. A menina fazia farmácia e o garoto comunicação. Helena a esposa de Mário cuidava da casa e para ajudar na renda da família confeccionava artesanato. Os problemas na vida de Mário começaram há acontecer seis meses após sua aposentadoria. A vida certinha e a rotina diária criaram problemas estruturais e comportamentais. Nos primeiros meses, Mário levantava cedo, por volta das 5h e 45 minutos, tomava banho, antes do desjejum, apanhava o jornal na grama e ainda fazia um afago no Chocolate fiel escudeiro dos Araújo. Café com pão, geléia de morango e cobertura de nata, além óbvio de uma banana e um pedaço de mamão. Após a aposentadoria o cardiologista de Mário após uma avaliação fez um alerta. “ A pressão é boa 12 por 8, mas o colesterol ruim está um pouquinho acima do desejado, mas nada que uma caminhada diária na ciclovia não resolva”. O ritual de levantar cedo era seguido como se Mário fosse para o trabalho. Não raro ele se deslocou até a parada onde pegava ônibus, mas depois de cair à ficha, Mário retornava para casa cabisbaixo e triste. Aos poucos a melancolia tomou conta da vida Mário que para completar a tétrica situação como gremista estava apavorado com a possibilidade do retorno a segunda divisão. Tudo contribuía para a melancolia, gerando em alguns momentos crises de choro, angustia e ansiedade. A vida já não tinha mais cor e nem mesmo as estripulias do amigo chocolate fiel cão motivava Mário. Um dia Helena avisou com o dedo em riste: “Já marquei uma consulta com o Dr. Freudiolino Sigmundo para tratar você. E tem mais você vai ir à consulta, porque a gente não suporta mais a situação”, argumentou a esposa. Para agravar o problema agora Mário parecia prestes a ser internado em uma clínica, pois não dormia mais em seu quarto, uma vez que com os olhos arregalados dizia em alto e bom som: “Tem um homem embaixo da minha cama e ele quer me pegar” Em alguns momentos o medo e o convencimento era tanto que João Pedro olhava embaixo da cama para ver se realmente não havia alguém ali. Consulta marcada, o consultório suntuoso num belíssimo prédio todo envidraçado fazia justiça ao preço. O encontro foi conforme o esperado, o psiquiatra de barba rala e branca, contrastava com os óculos redondos. O olhar aquilineo do profissional quase intimidou Mário. Após uma analise o psiquiatra deforma direta e franca, com mão no queixo, voz pausada demonstrando domínio de causa afirmou que o problema era grave, mas que um tratamento via analise resolveria a patologia. Seria uma sessão de uma hora e meia por semana ao preço de 180,00 cada sessão, num total de 720,00 por mês. O problema é que o tratamento seria de no mínimo de dois anos. Mário imediatamente calculou.... Um ano de tratamento equivaleria a um gasto de 8.640 reais (um carro usado), multiplicado por dois anos somaria um total de 17.280 reais. Mário suava frio e ao final da consulta retornou a sua casa. Após três meses em um supermercado da cidade, o psiquiatra encontrou o Mário no corredor das verduras e ainda impressionado com a patologia psicossomática do paciente em potencial, questionou: “E aí meu caro Mário como está?” “Bem doutor, melhorei muito”, respondeu Mário prontamente. O psiquiatra rebate: “Mas e a questão daquele homem que havia embaixo de sua cama como você solucionou?” O velho Mário sentenciou: “O senhor é um excelente profissional, mas analisando o que eu gastaria com o tratamento para me livrar do homem embaixo da cama, preferi contratar um carpinteiro”. O psiquiatra boquiaberta quase não acreditando no que ouviu perguntou : “ Um carpinteiro, como assim?”Mário sorriu colocando dois pepinos e um pé de alface no carrinho e lascou: “O carpinteiro cortou os pés da minha cama, resolvendo o problema por 50 reais”. Frase escrita nos muros de um antigo hospital psiquiátrico: “Aqui nem todos que estão são e nem todos os que são estão”...

PÉRICLES: O CRAQUE DO TWITTER

Péricles cresceu num bairro pobre do Vale do Sinos, filho de pais sapateiros que vieram na época do Eldorado do Sapato nos anos 80, quando a Carteira Profissional era confeccionada pela manhã e a tarde a pessoa já estava empregada. Depois vieram as crises cíclicas e a ameaça dos Tigres Asiáticos (China). Péricles assim se chamava em homenagem ao avô paterno; Péricles de Arruda Miranda; agricultor das bandas de Santiago do Boqueirão. O menino Péricles logo cedo demonstrava habilidades com a bola e já na escola pegou a fama de craque. Todos no momento da escolha dos times queriam Péricles na equipe. Aos domingos pela manhã nas peladas no campinho do bairro o pequeno Péricles era atração, alguns a boca pequena diziam: “Vai jogar no Colorado ou Grêmio” outros afirmavam que souberam pelo filho, do padeiro que o irmão do motorista ouvira falar que havia um empresário de Porto Alegre de olho no guri. Na verdade Péricles gastava a bola. O guri era do tipo atrevido, daqueles estilo Romário “marrento”. Drible da vaca, “meia lua”, “lambreta” que para nós gaúchos é “Charles”, e até os famosos “paninhos” eram peculiaridades do futuro craque do Vale do Sapateiro. Por ser uma espécie de gênio precoce, Mangel, o técnico da equipe do bairro Jardim do Sol, o glorioso Corinthians “O Coringão do Morro”, escalava Péricles mesmo com 13 anos no segundo quadro e com a 10. O menino roubava a cena, a torcida chegava cedo ao campo para ver os dribles e arte contagiante de Péricles. Não raro tinha mais torcida nos jogos do segundo do que do primeiro quadro. Todos queriam ver Péricles e sua genialidade. Gols de falta então era outra especialidade, de três dedos por cima da barreira. Ele batia no estilo Zico, Tadeu Ricci e de Andrézinho, tomava pouca distância a exemplo do velho mestre Enio Andrade, batia sempre procurando ultrapassar por cima do terceiro homem da barreira e a cada dez faltas cobradas pelo guri, oito se aninhavam onde a coruja dorme. Apesar de ninguém fotografar, na maioria delas, o goleiro nem na foto saia! Agora então surge a oportunidade de Péricles, uma porta se abre em uma escolinha de uma equipe de fora do Rio Grande do Sul, mas com uma extensão na região do Vale do Sinos. Péricles morava na área da escolinha num bonito alojamento, recebia um bom salário e um empresário era detentor dos direitos do passe do garoto por 20 anos; tudo graça a Lei Pelé. O salário de cinco mil reais ajudava e muito a família do menino. Até uma garagem o pai do craque construiu e aproveitou para rebocar e pintar a residência internamente. Agora na vila, Péricles apenas assistia aos jogos do Corinthians, o máximo que fazia na beira do gramado, próximo ao para-peito de eucalipto, era embaixadinhas para suspiros dos menores que se espelhavam em Péricles. Quarto com ar condicionado, televisão e até computador com acesso a internet assim era vida do futuro craque no alojamento da escolinha. Por último um telefone celular de última geração. Péricles agora passava a maior parte do tempo na frente do computador conectado no MSN, Orkut e outras parafernálias clássicas da era cibernética em que estamos inseridos. Mas a grande paixão de Péricles era o twitter. Chegava a faltar aos treinos para ficar “twitando”. Era uma espécie de vicio escravizante ao ponto de acabar com o futuro craque. Domingo ensolarado, manhã bonita de primavera e a escolhinha de Péricles decidia o título de juvenis (até 17 anos) com uma grande equipe da capital. Um grande empresário estava no estádio para ver Péricles e comenta-se que o objetivo seria levá-lo para a Europa. O menino estava apático durante toda a partida. No intervalo no vestiário enquanto o técnico fazia a preleção, Péricles “twitava” num canto, alheio ao que o “coach” dizia. A vida de Péricles mudou drasticamente aos 37 minutos da etapa final, a partida estava zero a zero , o ponteiro direito entrou em diagonal, cruzou e na frente do gol, somente Péricles e o goleiro adversário, a bola outrora a maior paixão do menino gênio se mostra sozinha, pronta para ser tocada para o fundo das redes. Era só bater, correr para o abraço, levantar a taça e assinar o contrato com o clube Europeu, porém Péricles estava absorto, desligado. Um misto de surpresa e desespero se abateu no estádio, tudo porque Péricles nem ligou para a bola, pelo contrário, tirou do calção, não um “cachimbo” como Renteria do Inter certa feita tirou, ou uma chupeta como Carlito Tevez. Péricles tirou o telefone do bolso e passou a “twitar”. A bola passou por ele, a vida passou por ele, o sonho passou pelo precoce menino que era craque no campo, mas escravo da cibernética. Onde estão os campinhos dos bairros? Onde estão os meninos correndo atrás de uma bola? Onde estão os Péricles que fazem embaixadas com a pobreza e driblam a marginalidade com a esperança no olhar?

MORUNGAVA? MORUNGAVA TEM!

Morungava é um recanto bucólico cercado de sítios com uma vista deslumbrante, verdadeiro cartão postal. È um recanto aprazível e um lugar para se viver e ser feliz. È um pedacinho do céu onde o homem e a natureza convivem em respeito mútuo. Em Morungava ninguém tem pressa e, portanto não existe da chamada depressão. Lá as pessoas te olham nos olhos e apertam firme a tua mão. Após o almoço a ciesta é sempre certa. Todos só retornam ao trabalho depois das 15 horas. Cortar cana, pasto, preparar a terra, plantar verduras, assim é o cotidiano deste lugar maravilhoso. O filosofo italiano Domênico de Masi deveria conhecer Morungava e por certo ali estabeleceria quem sabe a Universidade Mundial do Ócio Criativo. O campus seria construído com vista para o Morro do Itacolomi, que terapia! E como diria o Barão filósofo contemporâneo do Loteamento Rio Branco “Trabalhar enriquece o patrão, gasta sapato e embrutece o espírito”. No Morungava tem algumas coisas que quem sabe em outras terras não tem, como por exemplo: tem cortina ao invés de porta. Todo morungavense tem um pijama bom para no causo de baixar hospital e uma roupa bonita para ir na igreja. Tem o calendário 'Santo Antônio' na parede da sala e tem uma mesa comprida, com gaveta e o baralho ensebado dentro. Tem umas latas no alto do balcão da cozinha com farinha, arroz, erva, açúcar... aquelas que as crianças pequenas sentam em cima para ficar no tamanho da mesa . Em Morungava tem roupa secando no tampo e nos ferrinho do fogão à lenha, aceso o ano inteiro e com a chaleira que nunca sai de cima. Tem um saco de ráfia pendurado, com um monte de outros sacos de ráfia dentro e tem o vidro milagroso da essência Olina que é para quando se exagera na carne com pirão ou na costela gordita que como diz o Dr. Francisco eleva o “curesterol” lá nas grimpas. Tem patente ou tem banheiro, mas é do lado de fora . Tem os remédio para berne e sarna dos bichos em cima da geladeira . Tem uns pés de bergamota, lima ou laranja do céu do lado da casa, onde os cuscos ficam deitado o dia inteiro!!! Tem a varinha atrás da porta para tocar os gatos para fora e tem telefone com antena externa e uma bateria de caminhão. Tem um sabugo de milho enrolado com um pano (não para o que tu ta pensando, este troço é usado papel higiênico ou jornal, só nunca se usa urtiga nem aroeira) para trancar a água do tanque. Lá no Morungava tem compota e as chimias de todos os tipos em cima do balcão. Tem meia dúzia de galinhas poedeiras soltas no pátio. Tem um gato velho brazino, castrado dentro da bota, que dorme, dorme, acorda, come e dorme. Só que diferente dos gatos de Brasília, ele não rouba e os de lá não dormem. Tem as toalhas de mesa floreadas pra usar quando vem os parentes ou as visitas. Tem aquele fusca 75 estacionado na garagem tem casca de laranja pendurada atrás do fogão a lenha para fazer chá e tem pedaço de chinelo havaiana para fazer a porta parar de bater. Tem batata doce e amendoim assando no fogão a lenha e tem pôster do Inter campeão em 1979. Tem ratoeira armada em todo cantos da casa e tem o tanque de concreto.Tem o quadro dos bisa, quando eram novos, na parede da sala. Tem o espelhinho laranja no banheiro e o estrado de madeira para tomar banho, onde que cai o sabão e você não consegue pegar. Tem pão sovado, salame, chimia e sagu para comer, sempre tem toalha de crochê enfeitando a mesa da cozinha. Tem uma vassoura de galho para varrer o pátio, escorada numa árvore só não tem chave na porta da frente, porque na colônia se vive bem e não tem esta ladroagem que tem na cidade grande.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A CAMISETA DO FIGUEROA!

Corria o ano de 1975 e nós colonos perdidos no asfalto, vivíamos em Campo Bom o período de ouro das exportações de calçados. Viemos da roça em busca de dias melhores movidos pelo sentimento dos retirantes: a esperança. Em Campo Bom após alguns anos a família Wingert conseguiu adquirir a tão sonhada casa própria no bairro Rio Branco. Neste bucólico bairro eu e meus sobrinhos vivenciamos os melhores anos de nossas vidas. Vivíamos com extremas dificuldades, mas na beira do fogão a lenha a família estava unida, ouvindo ao anoitecer as histórias contadas pela avó e pelos pais. Nossa família sempre teve uma tradição colorada, aliás, os Wingert são colorados e os que não são tem que verificar porque talvez não sejam Wingert. Na década de 70 o Inter tinha um dos melhores times do mundo com Falcão, Figueroa, manga, Flávio, Lula, Valdomiro e outros expoentes. Lembro que os natais em nossa casa sempre eram marcados pelo amor e união da família. Não fazíamos ceia com peru, mas o almoço de natal com bife, salada de maionese e uma “Coca família”, numa garrafa de litro era um verdadeiro manjar. Presentes eram raros em função das dificuldades, mas o natal de 1975 foi inesquecível, pois minha vó perguntou o que gostaríamos de ganhar e ouviu de mim e de meus dois sobrinhos (Laone e Everaldo) que queríamos muito uma bola número 5 e eu afirmei que gostaria muito de ganhar do Papai Noel a camisa número 3 do Figueroa, o Laone pediu a número 8 do Caçapava e o Everaldo a número 5 do Falcão. Lembro que minha avó disse que era preciso sonhar e que talvez Papai Noel trouxesse tais presentes. Na véspera de natal na casa dos Wingert o ritual era o mesmo, minha mãe retirava do forno de barro os doces de natal e na mesa da cozinha sentávamos para ajudar a pintá-los. Um prato repleto de merengue e um copo cheio de confeitos tipo chumbinhos coloridos. Minha mãe passava o merengue branquinho com uma colher nos doces e nós polvilhávamos os doces com confeitos coloridos. Para nós eram verdadeiras obras de arte tipo os quadros de Picasso ou Portinari salvo é obvio as devidas proporções. A seguir os doces permaneciam na mesa até o amanhecer para secar. Mas naquele natal observei que minha vó não estava participando do ritual de pintar os doces, foi aí que ouvi um barulho vindo de seu quarto, tipo uma máquina de costura trabalhando. Disfarcei e me esgueirando pelo corredor da casa de madeira na Tapajós, aproximei-me do quarto da Vó Guina e olhando por uma fresta da porta, a vislumbrei junto à máquina de costura manual e sob luz de lamparina a costurar uma camisa. Uma camiseta!!! Meu coração acelerou, pois o número era o 3 e a camisa era vermelha. Fiquei ali aguardando astutamente a velha matriarca virar a camiseta e costurar o distintivo do Sport Club Internacional. Naquele instante descobri que Papai Noel existia sim, e não era só um, era vários. Papai Noel era o meu pai, minha mãe, meus irmãos mais velhos, minha vó e minha cunhada, pois aqueles presentes eram fruto do sacrifício de cada um deles. Fui dormir feliz porque o natal de 1975 foi o melhor natal de todos os tempos, principalmente porque estávamos todos juntos. No dia seguinte munidos da bola número 5 e das camisetas do Colorado, eu e meu sobrinhos desafiávamos os meninos gremistas do Morro a um embate no campinho próximo a casa. A camiseta do Figueroa, a monumental número 3 tinha um sentido de natal que na verdade é o sentido de amor, esperança, fé e sacrifício de uma família.

A FONTE "DA JUVENTUDE" DO RIO BRANCO

O tempo passa e ele continua lá como um impávido colosso. Na junção das ruas Tomé Paz e São Cristóvão no bairro Rio Branco, outrora conhecido como Morro das Pulgas encontra-se a chamada bomba d’água que nada mais é que um poço artesiano. Este poço faz parte da história do Rio Branco e porque não dizer da história de Campo Bom. Quando ainda Distrito de São Leopoldo o então sub-prefeito, Arlindo Blos, carinhosamente chamado de Arlindão determinou que este poço artesiano fosse construído para fornecer água aos trabalhadores da Companhia Estadual de Energia Eletrica – CEEE que adentraram no então Morro da Pulgas como desbravadores singrando vielas, capões de mato para implantar a energia elétrica no promissor bairro que era habitado na sua maioria por trabalhadores nas fábricas de calçados com ênfase aos Irmãos Vetter e seu apito agregador. Os postes implantados trouxeram luz ao bairro e mais comodidade a comunidade que até então utilizava lampiões e velas. Os eletricitários partiram com a missão cumprida, porém o poço permaneceu e se tornou um componente da vida cotidiana dos moradores. Não raro suas águas eram utilizadas para lavar roupa e até mesmo para matar a sede da população. Nos tradicionais comícios dos partidos políticos em muitas ocasiões os candidatos se utilizavam das águas límpidas e geladas do poço para molhar a palavra e encantar os eleitores. Não obstante quantos namoricos aconteceram ao redor de tal poço. A água era apenas um pretexto para a troca de olhares e muitas vezes ao entregar a caneca de alumínio ocorria o toque de mãos entre os flertadores era inevitável. Foi neste poço que muitas e muitas vezes os sapateiros quase exauridos após o serão nas fábricas de calçados ao lado de suas bicicletas matavam a sede de água, mesmo que a maior sede fosse a de justiça social. Este poço chamado de bomba pelos moradores acompanhou o desenvolvimento do Rio Branco e ainda presenciou casais saírem dos bailes do Salão Pacheco, bem como, foi dele a água que tentou em vão apagar o sinistro que veio sucumbir com o referido salão. O poço também presenciou o “pam pam ram ram” dos meninos e meninas do Emilio Vetter que ensaiavam antes do 7 de Setembro, nas tardes ensolaradas dos dias que antecediam a primavera, comandados pelas professoras – Sally, Isolina, Dorinha, Gessy, Leilaine, e Lenira pelas ruas do bairro em especial pela São Cristóvão, época em que o educandário se localizava na Tapajós, onde hoje funciona o Posto de Saúde e a Creche Sempre Viva. O poço que chamam de bomba viu o caminhão Persinica e foi nele que muitas vezes o Rubão matou a sede após um dia exaustivo de catar papel, osso, ferro velho e vidro quebrado. Neste poço os integrantes do Circo do Lambari e do Gira Gira buscavam água para beber e para lavar roupa quando se instalavam no bairro. Este poço foi testemunha ocular da festa da torcida do Oriente quando em 1996 os juniores do clube do Morro conquistaram o inédito título de campeão gaúcho. O tempo passou e muita gente se foi como num rabo de foguete. O bairro mudou e a erva preferida já não é mais a de chimarrão e craque não tem só no Oriente. Muita coisa mudou, mas o poço que chamam de bomba continua lá como um monumento a resistência acompanhando a história. Hoje seu benfeitor é a família Soares que cuida do mesmo como se fosse um membro do clã. O progresso chegou ao Rio Branco e trouxe avanços evidentemente, mas o progresso trouxe consigo suas mazelas e contradições. O mundo vive o fenômeno da globalização e crise mundial. Nossa globalizaram tudo, mas esqueceram de globalizar a esperança! O poço do Rio Branco é um personagem da história. É testemunha ocular de um tempo bom que já se foi. E a vida? Ah, a vida é como uma velha doceira que nos deixou chupando o dedo com o tabuleiro vazio e parafraseando o pensador escritor “escreva sobre tua aldeia e serás universal”.

* O sub-prefeito Arlindo Blos “Arlindão” está vivo e reside na Rua São Paulo próximo ao edifício Arpoador.

A SOLIDÃO DOS GOLEIROS

Certa feita algum escriba definiu solidão assim: “É quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma...” No futebol não existe alguém mais solitário que o goleiro, ou melhor, existe, um estádio vazio. Já esteve em um estádio vazio? A solidão ali dói visceralmente, falta algo... Ou melhor, falta tudo. E a solidão dos goleiros é igual para todos, ela é democrática, pois senão vejamos, a solidão de Rogério Ceni, Pato Abondanzieri ou Júlio César é semelhante a dos goleiros de várzea ou dos campinhos das vilas e bairros pobres do Brasil. Não tem sujeito mais solitário que o goleiro. Sempre tive profundo respeito pelos goleiros e descobri o martírio que é ser goleiro, nas brincadeiras em que a gente ficava no gol aí pude sentir epidermicamente o peso da solidão. Talvez por isso nunca tripudiei com os goleiros após marcar um gol, pois respeitava e respeito sua tétrica romaria embaixo dos três paus. Lembro que nos tempos de escola, muitos marcavam um gol e imediatamente, olhavam para o triste e melancólico goleiro, arrasado, na maioria das vezes ainda caído contra a trave de taquara ou de eucalipto e liquidavam com o infeliz com a frase: “busca porco!” Nunca fiz isto e contrariava aqueles que o faziam. E para aumentar as dificuldades na vida dos goleiros, o local onde ele pisa nem grama nasce. Quando toma um penoso é chamado de frangueiro, mas quando faz defesas milagrosas e voa lá onde a coruja dorme, numa plasticidade digna de um quadro de Picasso e veja bem quando falo em Picasso não é aquele que jogou no Grêmio nos 70 e sim o gênio das artes plásticas, pois quando o guarda metas ou guarda valas como era chamado defende tudo, os “corneteiros de plantão”, vociferam: “Não fez mais que a obrigação” ou “Ele está ali para isto”. O goleiro a exemplo do mordomo é sempre o culpado, mesmo não tendo culpa. Existe uma tese quase freudiana que diz que todo goleiro é um sujeito que não deu certo na linha e foi para o gol, penso que não, o Bilú que ao lado do Raul Blos foram os melhores do 15 de Novembro, já nasceram goleiros. A solidão dos goleiros já começa na infância, perceberam que é difícil um guri querer ser goleiro, todo mundo quer marcar gol e ser ídolo, na verdade não querem a solidão. Normalmente os gordos são goleiros natos, já observaram isto? No campinho da escola ou do bairro, os dois capitães vão escolhendo os melhores para cada lado e aí sobra um gordo e não raro se ouve a frase: “O gordo tu vai no gol” Quando o gordo protesta a conversa é a seguinte: “O gordo fica no gol até tomar três que aí a gente revesa”. Pobre gordo passa a partida inteira embaixo dos paus, alías, o gordo só tem escalação garantida na linha se é dono da bola ou se tem irmã bonita, no último caso pode jogar até com a 10. O goleiro carrega nas costas o número um e é o único que não pode errar. Quando alguém comete um pênalti quem sofre o castigo? O goleiro que fica ali abandonado na frente de seu carrasco em meio à solidão da meta. A solidão dos goleiros parece eterna e ele está fadado a assistir a partida de longe. No momento do ápice do futebol que é o gol, já notaram ninguém comemora com o goleiro que fica lá sozinho, mas alguns quebraram esta regra como Rogério Ceni que ao se tornar goleador com as cobranças de faltas, quando marca todos comemoram com ele, mas notaram que por não ser corporativista, sim, onde já se viu um goleiro fazer gol em outro, onde está à cumplicidade e porque não dizer piedade, por marcar gols na própria espécie? Ceni é castigado a não poder comemorar muito o gol, correr para torcida, subir no alambrado, nem pensar, pois o adversário dá a saída e pimba! E aí em um minuto o herói vira vilão e a passional torcida esquece o gol de gênio, de três dedos por cima da barreira e novamente o goleiro vira goleiro, com sua melancolia solitária. O goleiro se parar e pensar é a antítese do futebol, uma vez que sua missão é impedir o que existe de belo, poético e lúdico dentro das quatro linhas: o gol. Os mais antigos citam: Yashin ou Lev Ivanovich Yashin; russo que segundo os entendidos afirmam que o “Aranha Negra” foi o maior goleiro do mundo. Não vi em ação exceto por alguns lances de copas do mundo. Ele participou de quatro copas; inclusive a de 70 no México. Mas para mim o melhor de todos, aquele que virou lenda assim como o Aranha Negra foi Hailton Correa de Arruda, ou simplesmente Manguinha como gostava de ser chamado. Quem não lembra das defesas contra o canhão de Nelinho na final de 1975? Manga fazia poesia com a bola; defendia com uma mão só. Em vespera de grenal retirava o gesso e jogava mesmo com dor e com os dedos tortos, porque amava o futebol e não raro jogava no pife o bicho do domingo, na concentração na noite anterior ao jogo, tudo porque atuava no melhor e maior time que o Internacional montou em todos os tempos (1975/76). Mas mesmo Manga era um solitário, tanto que o Rei Dadá “Dario Peito de Aço” ao marcar um gol na final contra o Cortinthians em 1976, corre o campo inteiro e pula nos braços de Manguinha quebrando assim a solidão do gênio dos dedos tortos e das defesas magistrais. E por estas e outras que respeito a solidão dos goleiros.

O TREM DAS ONZE

Nada acontece por acaso, pois em tudo existe um sentido. Manhã fria de 12 de agosto, eu e minha esposa estamos na capital dos gaúchos, próximo ao Mercado Público os transeuntes enfrentam o trânsito, driblam os veículos e seguem seus destinos, cada qual com seus sonhos, angustias lutas e antes de tudo cada um traz a esperança no olhar.... Próximo ao chalé da Praça XV um mendigo dorme inerte aos acontecimentos, seu cobertor velho, encardido o aquece da frieza e ao seu lado servindo de travesseiro um jornal do dia anterior, mostrando noticias velhas e passadas. Do interior do Mercado exalam vários aromas em especial do café passado na hora... E um homem baixo, barba por fazer anuncia: compro ouro, mais adiante uma mulher propagandeia “fábrica de calcinhas” e seu anuncio misturasse com o de um idoso que grita de forma estridente “Valê, valê, valê... Valê!!!” E o povo segue na sua tétrica romaria. Os jornais do dia trazem como manchete a vitória do Internacional de virada em cima do “Chivas” lá México com atuação de luxo do menino Giuliano e do general Bolívar. Atravessamos a movimentada avenida e nos dirigimos à estação do Trensurb, no caminho nos deparamos com a campanha de um candidato que no santinho promete salvar o mundo. Alguns metros dali, outro andarilho dorme em berço esplendido, tendo os degraus da escada como travesseiro e a seu lado o fiel escudeiro, um cão brazino ali próximo a seu dono em fiel vigilância. Bilhetes comprados subimos a escada rolante, na estação Mercado aguardávamos a vinda do trem. O vento gélido vindo do Guaíba trazia uma sensação térmica ainda menor. Quando aguardávamos o trem das 11 horas da manhã, vislumbro um dos craques do passado, um ídolo que fazia parte da minha infância e do meu álbum de figurinhas do campeonato brasileiro de 1972. Claudiomiro vestia um casaco vermelho e calça jeans, acompanhado por uma jovem senhora. Fiquei ali extasiado pois estava na minha frente um dos maiores artilheiros do Brasil. O homem que fez o gol de inauguração do Beira Rio em 1969. Aproximando-me cumprimentei-o e puxando uma conversa lembrei-o de uma entrevista concedida a este escriba em 1994 quando o mesmo residiu em Campo Bom, mais precisamente no bairro Quatro Colônias. Aliás a mãe de Claudiomiro ainda reside na cidade do sapato e dos sapateiros! Após o bate papo descontraído, o trem das onze se aproxima e Claudiomiro sentou nos bancos à minha frente. Entabulamos mais algumas conversas, ele lembrou que na sexta-feira estaria no litoral participando de mais um jantar do Consulado. Após um silêncio fiquei observando Claudiomiro e seu olhar como que perdido, fitando a paisagem pela janela do trem. Um misto de alegria misturado com um semblante de tristeza. Quem sabe aquele senhor já sexagenário com o rosto sulcado, marcas da idade que chega de forma arrasadora, tal qual os centroavantes goleadores, com seu olhar absorto não estava lembrar dos gols que fazia nos grenais para desespero do tradicional adversário da Azenha? Ou quem sabe não estava a lembrar dos embates com os zagueiros truculentos? A verdade é que Claudiomiro tinha faro e sede de gol. Era do tipo de jogador que deveria colocar na Carteira Profissional de Trabalho, função: fazer gols! O bigorna como era conhecido fazia gols a profusão, aliás, não existe gol feio, feio é não saber fazer gol. Claudiomiro com seus gols geniais fazia as tardes de domingos por vezes cinzentas e frias se transformarem em dias alegres e primaveris. Além de goleador, o bigorna tinha excelente técnica, sabia proteger a bola com seu corpo apesar de baixo, mas atarracado. Raçudo, ele encarava os zagueiros de igual para igual, Claudiomiro não arrepiava, pois sua ânsia era fazer gols e correr em direção a coréia, local extinto no Beira Rio mas que abrigava o povo colorado mais vibrante e apaixonado. O povo da coréia muitas vezes não tinha dinheiro para assistir as partidas e não raro se deslocava a pé até o estádio, sempre para reverenciar o artilheiro. O trem das onze seguia célere e estação Aeroporto uma parada, dois garotos adentram, ambos trajando com as camisetas do Internacional. Os dois guris passam e despercebidos nem mesmo olham para a esquerda, onde no banco em minha frente está um dos ícones do colorado. Fiquei a pensar: a idade chegou, mas com certeza, mesmo que os meninos não o reconheçam seus pais o reconheceriam e o reverenciaram, pois Claudiomiro era craque! Teve problemas fora do campo, sim os teve, mas a maioria dos craques tiveram. O certo é que Claudiomiro era um poeta que fazia sonetos com bola e seus versos sempre rimavam com gols! O campo inteiro cabia dentro de suas chuteiras. Numa das estações a jovem senhora se despede com a frase: “Tchau pai” e seguiu sua rotina. Já na estação Matias Velho em Canoas, Claudiomiro se despende com um “tudo de bom” e se mistura com o povão que anda de um lado para outro. O trem vai se afastando e o centroavante matador do passado, aquele do meu álbum comprado na vendinha do Moraes vai se perdendo do meu olhar, mas tenho certeza que em algum lugar do passado na rede ainda balança seu último gol. E eu segui a viagem, feliz pelo momento impar e mágico. Estava no lugar certo e na hora certa, no trem das onze!

E ESCOLA FINGE QUE EDUCA E A CRIANÇA FINGE QUE APRENDE

Você já parou e observou que a educação no Brasil avançou muito nos últimos 8 anos, mas muito ainda precisa ser feito. Somente a educação será capaz de criar pensadores e não meros repetidores de informações. É urgente interferir humanamente no íntimo das comunidades humanas, questionar convicções e, fraternalmente, incomodar os acomodados. A escola precisa ser revolucionária, libertária e solidária O atual modelo apenas escolariza. Uma coisa é falar em educação, outra é falar em escolarização. A maioria das pessoas que estão cometendo grandes crimes são pessoas escolarizadas. Então, que escola é essa? Para que ela serviu? Não ajudou nada, mas escolarizou. A escola atual não permite inovação e serve ao modelo consumista que apregoa o individualismo. Ela é reprodutora da mesmice. O conteúdo da escola está pronto e acabado. Os meninos e meninas que vão entrar na escola no ano que vem, independentemente de quem sejam, aprenderão as mesmas coisas, do mesmo jeito. Aprendem o que alguém determinou que tem que ser aprendido. Um projeto de vida, não de formação para o mercado. A lógica da vida não é ter um emprego. Será que é possível construir um processo de uma escola que incorpore valores dignos, que passe a perceber que a ciência precisa estar condicionada a esses valores, que a tecnologia precisa estar condicionada a esses valores, que elas não podem ser determinantes dos valores humanos? Muito se tem reclamado da ausência de pais nas reuniões das escolas e sabe por quê? Porque a escola não mudou, pare e pense: os prédios de escolas e de presídios são tão iguais arquitetônicamente, ou seja, a semelhança é gritante. A escola não é algo atraente e prazeroso. A escola ideal deve ser tão boa que educadores e alunos desejem aulas aos domingos e feriados. Hoje, temos exatamente o contrário, ninguém tem prazer em estar na escola. As crianças estão no século 21 e a escola está Idade Média. A escola é a única instituição contemporânea que tem servos, tem serventes, pessoas que estão lá para nos servir. Nem em banco tem isso, lá são "auxiliares de serviços gerais". È imperioso romper com esta escola que está pronta há 500 anos, na qual os professores fingem que ensinam e as crianças fingem que aprendem. Tenho uma filha que se forma em magistério este ano e logo ali estará no mercado de trabalho. Sempre que possível a instigo e questiono: você será uma professora ou educadora? O professor é aquele cidadão que está apenas preocupado com o contra-cheque no final do mês. Não está aí para as crianças e muito menos tem comprometimento com a construção de uma educação libertária. O professor é aquele que ensina, o educador é aquele que aprende, porque ele só consegue ensinar o que aprendeu. Para o professor basta citar os pés de páginas, fornecer uma boa bibliografia, ele pode falar entre aspas. Não precisa falar daquilo como uma vivência, já o educador é um sonhador, um semeador. O educador tem a consciência de que multiplicamos o conhecimento, mas não os homens que pensam. Educar não é repetir conteúdos e sim criar idéias e pontos de interrogação entre seus alunos. O educador e filosofo Rubem Alves nos convida a refletir neste pensamento: “Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo." O Dr. Augusto Cury uma das maiores autoridades em psiquiatria em seu livro Professores Brilhantes, Alunos Fascinantes (editora Sextante) afirma: Professores fascinantes usam a memória como suporte da arte de pensar, o que contribui para desenvolver nos alunos: o pensar antes de agir, expor e não impor idéias, consciência crítica, a capacidade de debater, de questionar, de trabalhar em equipe. A memória humana é um canteiro de informações e experiências para que cada um de nós produza um fantástico mundo das idéias” Por último cabe cobrarmos dos governos (em todas as esfera), a democratização da escola com eleição direta dos diretores, a valorização do professor com salários justos e cabe analisar o seguinte: Se metade do orçamento dos gastos militares e guerras no mundo fosse investido em educação , os generais poderiam ser transformados em jardineiros, os policiais em poetas e os psiquiatras em músicos. A violência, a fome, o medo, o terrorismo, os problemas emocionais estariam somente nas páginas dos dicionários e não nas páginas de nossas vidas. Não sei se disse, mas tentei.